quinta-feira, 13 de março de 2014

Epitáfio

Foi ontem o funeral.
Soube-o antes mesmo de saber que tinha morrido o Ti' Zé "Rata", ou Zé "Talego", para o povo - José dos Santos Augusto de seu nome, antigo sacristão, contador de histórias, empalhador de garrafões e... um dos postais vivos (um "cromo" no bom sentido) de Famalicão.
Quando morre um idoso, disse alguém, arde uma biblioteca; e, pese embora o modesto percurso escolar do falecido, foi realmente um pedaço de Famalicão que ontem foi a enterrar - mais um dos muitos pedaços que ultimamente se têm ido e que, em grande medida, configura(va)m a memória de Famalicão da minha meninice (há algumas semanas, tinha ido o Ti' Manel "Ruço", figura respeitada na Banda e recordado, por várias gerações, pelos vigorosos "contracantos" do seu bombardino); outros tinham também seguido o mesmo caminho - figuras familiares, que nos habituámos a ouvir e a ver nas ruas, a apanhar o sol na Praça, ou a jogar a sueca à mesa da taberna.
Escrevi um opúsculo sobre o Ti' Zé, as suas memórias e a sua arte de tecer garrafões e histórias (Tecedor de memórias - José dos Santos Augusto empalhador de garrafões - coleção "Fio da Memória, Câmara Municipal da Guarda, 2004) e pude, por isso, partilhar alguma da sabedoria acumulada que agora se perdeu...
Quantas outras "bibliotecas" não estão por aí, com fim a prazo, à espera que as conheçam...

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

In memoriam

Neste mundo, onde ninguém vive tão sozinho como pensa, toda a gente nos toca, de um qualquer modo, e os amigos de um modo sempre especial.
Não sei se escorrego para a banalidade, nem isso me importa muito, neste momento: o Francisco Gonçalves, o Chico, deixou-nos ontem e é quase automático o turbilhão de recordações que nos assalta a cada momento - os projetos partilhados, os (des)entendimentos, as cumplicidades, os (des)encantos e, acima de tudo, a amizade, que sempre arranjou maneira de fintar algumas ideias travessas e travessuras da vida e manter-se à tona, em todos os momentos.
O Chico tocou muitas pessoas, principalmente aqueles com quem partilhou tantos projetos em que se envolveu e envolveu outros - a Rádio, o teatro, a Fanfarra, os anos de presidência do Centro Cultural, os Bombeiros e, ultimamente, o Centro de Dia.
O Chico tinha alguns defeitos, que às vezes lhe atirávamos à cara e até ampliávamos - é sempre fácil sermos exigentes, reclamarmos mais empenho e envolvimento, esquecendo tantas vezes o quanto as pessoas já sacrificam em termos pessoais, familiares e mesmo profissionais.
Essa corda, o Chico trazia-a sempre esticada: para tentar arranjar tempo para ser pai, dirigente, comandante... À sua volta, as pessoas sabiam isso, que ele estava disponível, que só sabia estar disponível. Mesmo quando reclamavam mais disponibilidade... E o Chico ia fazendo, acabava sempre por fazer.
O Chico foi polémico, zangou-se e reconciliou-se com muita gente. Bebeu uns copos e disse inconveniências, enganou-se, pediu desculpas e desculpou...
Agora morreu, e talvez haja quem passe a falar dele como um anjo ("a morte faz de nós anjos", dizia o Jim Morrison). Não sei se o Chico gostaria de ser anjo e, sinceramente, continuo a achar que não tinha muito de santo... Mas era um amigo e aqueles que o contavam entre os seus amigos sabem que esse sentimento basta para que tudo o resto valha muito pouco na balança da memória que guardaremos dele.
Descansa em paz, companheiro!

(28/01/2014

terça-feira, 30 de julho de 2013

silvestre


à beira do caminho,
uma flor.

(fecho os olhos, à procura
do verso ou da palavra que alumie
o indizível)

Indiferente,
olha o céu e cresce.



(Famalicão, 30-07-2013)

terça-feira, 9 de julho de 2013

abertura

"Montes maninhos". Ouvi a expressão, pela primeira vez, da boca da minha avó Maria, no meio de uma das muitas orações populares que me contava à noite, quando dormia em casa dela. Tratava-se, creio, de afastar as trovoadas para os montes incultos e ermos,  onde não desse prejuízo...
Gostei da expressão. Talvez por me lembrar os rosmaninhos e o aroma agreste da serra de Famalicão (que, no geral, tem muitas semelhanças com as outras serras...), com as suas cores de fronteira, que junta o pó negro dos lameiros do Quêcere, a correr para o Mondego, por entre pedras e "carriços" com o barro vermelho da encosta que desce para o Vale do Zêzere.
Ao fim de tantos anos, já não sei bem se é o cheiro que me vem à memória, se é a  memória que se espevita, como um velho lume meio apagado, quando o vento quente me traz esse olor inconfundível do mato, do pó das veredas e da lengalenga morna da bicharada...
Hoje, em particular, outras memórias se sobrepõem a estas mais antigas. Outros sentimentos, também.
O último dia do Sérgio "amanheceu feliz", como começa o poema de Torga, na lápide do memorial, na Barroca de Monte. Era um dia igual aos outros, até que a mão invisível cortou o fio que prendia o Sérgio e os cinco sapadores chilenos ao chão da serra.
Ali perto, atarefávamo-nos a abastecer tanques e a refrescar os rostos suados. Alheios à agonia. O nosso mundo fica assim muito pequenino, de repente, nas horas de aflição...
Nunca escrevi nada para ti, Sérgio, desde esse dia 9 de julho. Desde que, às primeiras vozes de "já morreu gente", me recusei a suspeitar de que poderias ter sido tu e continuei, fechado no meu pequeno mundo, a acorrer às chamas que ameaçavam aqui e ali, à procura do meu pai, que tinha ido ver do pinhal... até me ajoelhar no pó do caminho, no choque da verdade.
Escrevi agora, e talvez magoe alguém com estas linhas. Claro que não foi para isso que o fiz, mas precisava de uma coisa boa para abrir o meu blogue.
E a tua vida foi boa. Como será sempre boa a tua lembrança. Apesar da saudade e da dor.
Ela está lá, mais forte, no ar quente e no cheiro selvagem do mato da serra. Nos meus "montes maninhos"...